Partida
Ao pensarmos em Portugal nosso
imaginário de início recorre à paisagem dos vales de videiras encobertas com névoa
ou dos olivais à beira dos muros de pedra. Poucos se remetem às praias de areia
branca pintadas sobre a Ilha da Madeira como parte das terras lusas. Ainda que
pouco conhecido, o arquipélago da madeira se ergue como cidadela legitima da
alma portuguesa em meio às portas do atlântico profundo. Esta pequena ilha de
origem vulcânica com clima ameno e praiano se fez grande na musicalidade que
exportou ao mundo.
Desde os tempos romanos existem
relatos da existência destas ilhas porem, não houve no arquipélago nenhuma
tomada oficial de posse. Nem mesmo ocupação.
Em 1419 os navios do reino ali
desembarcaram. Era mais um ponto descoberto pela ousadia da odisséia lusitana.
Portugal ousava, desafiava a geografia e se empreendia nas conquistas. Para se
ter poder era preciso conquistar, e lá se foram. Tocando pouco a pouco aquilo
que era visto como intocável a nação portuguesa foi desbravando, conquistando,
descobrindo oportunidades e rumos. Era preciso dar novos mundos ao mundo e
neste caminho novo que se trilhava pelo atlântico deram de cara com o arquipélago
da Madeira. Mais adiante achariam os Açores e de lá não se aquietariam. Não
bastou colocá-las no mapa, Portugal as ocupou e o encanto do clima subtropical daquele
ponto não demoraria a trazer lucros.
Bufunfa Melada
As navegações continuaram e as
descobertas nasciam. A ousadia tinha seu preço, exigia homens de fibra e decisões
de estado. Triste dos que tombavam no meio da empreitada. Mas a dificuldade era
recompensada com os tesouros do além mar. Novos povos para se fazer comercio,
novos panos, marfins e o faiscante ouro da África. Surgia o caminho da Índia. Agora
uma infinidade de produtos antes desconhecidos emergia ao sabor do consumo. Por
serem novidade, tais produtos motivariam o apetite de compra em uma Europa
cansada do mesmo pão e vinho de sempre.
Muito se fala sobre o choque
cultural destes descobrimentos. Povos do leste e do oeste, do velho e do novo
mundo agora se relacionavam mutuamente e de uma forma nem sempre harmônica.
Tanto que o impacto gerado pelo contato inédito entre os povos traria as conseqüências
mais profundas de suas histórias. No entanto houve também o choque bio-ecológico.
Novos nichos ecológicos e espécies foram apresentadas a europeus que
desconheciam a idéia de impacto
ambiental. Movidos pelo lucro e a exploração comercial terras foram devastadas
e espécies nativas deram lugar a exóticas ao mesmo tempo que as exóticas em
outras situações também eram trocadas por nativas. A profundidade deste impacto
é muito bem descrita na obra “Imperialismo Ecológico” do escritor Alfred Crosby.
(No livro, Crosby concentra-se na pouco examinada invasão biológica das novas
terras pelo que chama de "biota portátil": o conjunto de animais,
vegetais e doenças que embarcaram junto com os europeus nas caravelas e
acabaram por alterar todos os ecossistemas do globo)
Dentre as espécies novas e rentáveis
que as descobertas descortinaram estava a Cana (Sacharum
spontaneum). Nativa da Índia, esse
capim emanava o suco divino do açúcar. Maior acariciador do paladar que o homem
já vira ate então. Berço do doce e das pimentas, a Índia foi sem duvida a terra
prometida do paladar. O seio do Ganges oferecia , através de suas iguarias inéditas na Europa,
uma porta aberta e dourada para rentáveis negócios. “Aquele que não conhece
doce, quando come se lambuza”, e assim o fez os mercados consumidores do norte.
Europeus não tinham contato com o açúcar. Não o conheciam antes da descoberta
da cana indiana. De inicio alguns gramas desta delicia chegavam nos portos
europeus pelas mãos dos árabes a preços imorais. A procura afinal era grande
pois muitos queriam ter o prazer daquele sabor. Povos da antiguidade
desconheciam esse capricho. Suas sobremesas se resumiam a frutas e o único doce
q conheciam era o mel. Pobres gregos, Galeses e Romanos. Tais povos, que tantas conquistas e engenhos deram a
humanidade morreriam sob a chaga de nunca terem experimentado ou conhecido o
sabor lascivo de um pudim ou do Petit Gateau com sorvete de creme.
O açúcar vindo da India foi sendo levado pelos portugueses aos mercados
famintos da Europa. O produto valia mais que drogas e se vendia nas butiques de
luxo. Fardos de rapadura eram facilmente arrematados em casas de leilão por
alto preço. A força desse mercado fazia a alegria das mulheres gordas do velho
continente que torravam seus vinténs para sentir no paladar o toque do
sabor que traz orgasmos.
Não era de se espantar que muitos procurassem maneiras de expandir tais
lucros. Produzir a cana em regiões mais próximas reduziria custos e afastaria a
intermediação dos indianos. A cana em solo europeu não vingou já que o inverno
setentrional implacavelmente a torturava. Mas eis que surge uma alternativa: a
Ilha da Madeira com suas brisas praianas e clima mais quente que o do continente.
O clima associado ao solo vulcânico garantiu prosperidade da cana de açúcar na ilhota e a produção encheu o reino português de dotes, a ilha de
progresso e as mulheres consumidoras de calorias.
A quente ilha da Sicília também se aventurou no negocio mas não conseguiu
igualar-se aos portugueses da Madeira que adquiriram um know how espetacular. Muitos
açucareiros sicilianos acabaram ido para a Madeira. Os habitantes da ilha
passaram a ser os especialistas europeus no assunto cana de açúcar. A
prosperidade se derramou na vida cotidiana, a ilha se enchia de festas. A
musicalidade como de costume marca os períodos de euforia. A vila do Funchal, nas
festas de louvor ao divino se deparava com um rico festejo onde cada um portava o seu cavaquinho.
O cavaquinho também
chamado braguinha, é um instrumento
originário do norte de Portugal, que mais tarde foi
amplamente introduzido na cultura popular da Ilha da madeira.
O curso dos acontecimentos se segue. Ao chegar o século XVI grandes oportunidades
de investimento açucareiro surgem no Brasil. Com um clima tropical genuíno não era de se espantar que a sugestão do plantio de açúcar pintasse os olhos colonizadores com o desenho das cifras. Ao introduzir
a cana no Brasil foi necessário que homens experientes no assunto viessem da
ilha da Madeira. Muito da nossa empresa açucareira se deve a contribuição dos
açucareiros da Madeira. Muitos chegaram com suas famílias e na bagagem trouxeram
seus brinquedos de festejo: os cavaquinhos.
Este instrumento, hoje tão popular e oriundo dos portugueses, principalmente da Madeira, se
disseminaria pelo interior e pela costa. Dos botequins aos morros de periferia
ele se fez presente. Embalando o chorinho e as rodas de gamboa.
O chorinho do pacífico
Após o séc. XVII a prosperidade da cana na ilha da Madeira
conhece seu ocaso. A região agora passaria ser um grande dispersor de população.
Por volta do séc. XIX fatos
interessantes ocorrem. Ha muitas milhas do Atlântico um pequeno arquipélago passava
por mudanças estruturais. O lugar em questão eram as Ilhas Sandwich. Estas ilhas
vulcânicas perdidas no meio do Pacífico e abençoadas por ondas enormes viviam
um momento de agitação. Em meio a graves lutas entre os chefes tribais locais
surge um nome que consegue unificar o povo e se proclamar líder supremo das
trinos polinésias da ilha. Seu nome é Kamehameha (não me perguntem porque o
nome dele é o mesmo do golpe do Goku ) .
Kamehameha cria bases de
modernização para a sua nova nação e estabelece laços comerciais com o
ocidente. Proclama-se rei de um arquipélago que busca se encaixar aos padrões modernos
de estados monárquicos. Promover a produção e o comércio era fundamental para o
desenvolvimento nacional e para isso Kamehameha I, estabeleceu políticas de
incentivo agrícola, atraiu investidores e investiu nas culturas tropicais de
alto valor no mercado consumidor norte americano, que cada vez mais aumentava
seus negócios com a região.
O nome do país foi mudado de
Ilhas Sandwich para Reino do Havaí. Investiu-se em portos e casas de comércio.
Foram aplicados capitais na produção de café, bananas, açúcar e principalmente
abacaxi (que aliás é um fruto nativo do Brasil). O Havaí se tornou o grande
produtor de gêneros tropicais no pacifico e abastecia grande parte do consumo
de abacaxis do Japão e Coréia. Kamehameha I seguia o clássico estereótipo de
rei polinésio, gordo com longas saias de desenho floral, tiara com fibras de côco,
colar de flores e um hibisco na orelha. Mas por traz desta figura havia um
homem de visão empreendedora. Para dinamizar a produção de açúcar promoveu a
imigração. Os habitantes da ilha da Madeira, tão experientes na produção de açúcar,
logo abraçaram a oportunidade de nova vida na terra próspera do Havaí.
No final do XIX muitos
madeirenses foram para o Havaí trabalhar nas plantações de cana. Era uma longa
viagem de 4 meses que deixou marcas profundas na terra do surf. Até o ano de
1910 cerca de 20 mil portugueses da Madeira viviam ali. Da mesma forma estes
imigrantes carregaram na bagagem seus costumes e feitios. O cavaquinho português,
o mesmo levado da Madeira para o Brasil, seguiu para o porto de Honolulu e por
lá ficou. O instrumento foi adotado pelos locais, adquiriu feições próprias e
passou a se chamar ukulele.
A sonoridade que desembarcou no Brasil e embalou o chorinho boêmio das
rodas de bamba passaria sorrateiramente a também entoar as noites de luau sob a
sombra do Kilauea.
O importante mesmo e saber que ate as coisas mais simples seguem um longo
caminho ate se tornarem o que conhecemos.
No ano de 1898 os americanos bancaram um motim que derrubou a monarquia.
A intervenção veio seguida de invasão e hoje o antigo reino é o 50° estado dos
EUA, mas ai já é outra história.